Itália e o direito internacional: o conflito com a CEDU e a ONU
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Itália e o direito internacional: o conflito com a CEDU e a ONU
O conflito com a CEDU e a ONU
O direito à cidadania é mais do que uma criação das constituições nacionais.
Ele é um direito humano reconhecido pelo direito internacional como elemento essencial da dignidade da pessoa.
A Lei 74/2025, ao restringir o acesso à cidadania italiana por critérios arbitrários de geração, residência ou "vínculo efetivo", não viola apenas a Constituição de 1948 – ela também contraria as obrigações internacionais assumidas pela República Italiana.
O conflito é jurídico, político e moral.
E coloca em xeque a credibilidade internacional da Itália como Estado que sempre se apresentou como defensor da liberdade e dos direitos humanos.
O valor internacional da cidadania
A cidadania é a base do pertencimento jurídico e político.
Ela define quem é sujeito de direitos dentro de um Estado e quem é reconhecido como parte da sua comunidade.
Por isso, desde a Segunda Guerra Mundial, os instrumentos internacionais passaram a tratar o direito à nacionalidade como um direito humano fundamental.
O artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos é explícito:
"Todo homem tem direito a uma nacionalidade, e ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade nem do direito de mudá-la."
Esse princípio é repetido na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDU) e na Convenção sobre os Direitos da Criança, das Nações Unidas, da qual a Itália é signatária.
Ao criar obstáculos artificiais e retroativos à transmissão da cidadania, a Lei 74/2025 – e agora o DDL 1450 – afrontam diretamente esses compromissos internacionais.
A obrigação internacional da Itália
A Itália é parte de um sistema jurídico multinível.
Sua Constituição de 1948 integra-se a tratados internacionais que têm valor normativo interno.
O artigo 117 da Constituição Italiana determina que o poder legislativo deve respeitar as obrigações decorrentes dos tratados internacionais e do direito da União Europeia.
Isso significa que qualquer lei nacional que viole um tratado ratificado pode ser declarada inconstitucional.
A Corte Costituzionale já consolidou esse entendimento em diversas sentenças, reconhecendo que o respeito aos tratados é parte do próprio conceito de Estado de Direito.
Logo, ao aprovar uma lei que restringe o direito à cidadania sem base em critérios legítimos, o Parlamento não apenas ofende a Constituição, mas também descumpre compromissos internacionais vinculantes.
O conflito com a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDU)
A CEDU, em seu artigo 8º, protege o direito à vida privada e familiar.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) interpreta esse dispositivo de forma ampla, entendendo que a cidadania integra o núcleo da identidade pessoal e familiar.
Diversas decisões do TEDH já afirmaram que a negação ou retirada arbitrária de cidadania constitui violação ao artigo 8º, por afetar diretamente a vida privada e a segurança jurídica do indivíduo.
Ao condicionar a cidadania italiana à residência ou a "vínculos efetivos" com o território, a Lei 74/2025 cria uma distinção entre italianos "de dentro" e italianos "de fora".
Essa distinção fere o princípio de igualdade material e, portanto, contraria a CEDU.
Além disso, a ausência de regras de transição – que deixou milhares de processos em limbo – representa, na prática, uma forma de negação de justiça, incompatível com o artigo 6º da Convenção, que assegura o direito a um processo justo e razoável.
A violação da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança
A reforma também entra em choque com a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), da qual a Itália é parte desde 1991.
O artigo 7º da Convenção estabelece que toda criança tem direito, desde o nascimento, a um nome e a uma nacionalidade.
E impõe aos Estados o dever de garantir esse direito de forma imediata e efetiva.
Ao impedir que menores descendentes de italianos adquiram automaticamente a cidadania por via de sangue, a Lei 74/2025 viola frontalmente esse dispositivo.
Transforma a cidadania infantil em ato condicionado, dependente de requisitos burocráticos e de tempo, o que é incompatível com o princípio da proteção integral da criança.
Nenhum menor pode ser privado da identidade nacional por falhas administrativas.
E nenhum Estado pode ignorar esse princípio sem romper com o sistema internacional de proteção aos direitos humanos.
O contraste com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
A Carta de Nice (2000), incorporada ao Tratado de Lisboa, reconhece a cidadania da União como direito derivado da nacionalidade de um Estado-Membro.
Isso significa que qualquer restrição à cidadania nacional impacta automaticamente o status europeu do indivíduo.
A Itália, ao alterar os critérios de reconhecimento da sua cidadania, interfere no quadro de direitos de cidadãos da União, como liberdade de circulação, trabalho, educação e voto em eleições europeias.
Esse impacto transnacional torna o problema ainda mais grave, porque afeta não apenas descendentes de italianos no Brasil ou na Argentina, mas também a coerência do sistema jurídico da própria União Europeia.
Se o Parlamento Italiano insiste em legislar sem observar essas conexões, cria um conflito entre ordens jurídicas e expõe o país a questionamentos no Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
O dever de boa-fé e a credibilidade internacional
O direito internacional não se sustenta apenas sobre sanções, mas sobre confiança.
Os Estados têm o dever de agir de boa-fé ao aplicar suas leis internas, especialmente quando essas leis tocam direitos humanos.
A Itália sempre se apresentou como modelo de Estado democrático e constitucional.
Violar tratados para atender a agendas internas é uma ruptura de credibilidade.
Além disso, decisões internas que contrariem compromissos internacionais abrem margem para responsabilização diplomática e contenciosa.
A experiência mostra que o Tribunal de Estrasburgo (TEDH) não hesita em condenar Estados que legislam de forma discriminatória ou retroativa em matéria de cidadania.
Cidadania e dignidade: um dever global
O direito à cidadania é a porta de entrada para todos os outros direitos.
Sem ele, o indivíduo se torna invisível, incapaz de exercer garantias civis e políticas.
Por isso, restringir a cidadania por critérios arbitrários é uma forma sutil de exclusão.
A Itália, que sempre se orgulhou de sua diáspora e de seus valores republicanos, deveria ser o exemplo, não a exceção.
O respeito à cidadania é o respeito à própria identidade italiana.
Conclusão
A Lei 74/2025 e o DDL 1450 não violam apenas a Constituição Italiana, mas também tratados internacionais que a Itália prometeu respeitar.
Eles representam um retrocesso civilizatório e colocam o país em rota de colisão com o sistema europeu e global de proteção aos direitos humanos.
A cidadania iure sanguinis não é um privilégio de origem, é a continuidade de uma comunidade histórica reconhecida pelo direito internacional.
Negar esse vínculo é negar a própria vocação universal da Itália.
É hora de a Corte Costituzionale reafirmar, diante do mundo, que a República Italiana permanece fiel à sua Constituição e aos compromissos que assumiu quando escolheu ser uma democracia.
Por Mariane Baroni
Advogada especializada em Direito Internacional e Constitucional
Diretora Jurídica da Master Cidadania
Autora da série "Você sabe exatamente o que está sendo discutido?", dedicada a traduzir o debate constitucional italiano em linguagem acessível, sem perder o rigor técnico.
A série integra o projeto "A Constituição e a Cidadania", que resultará no e-book homônimo a ser lançado após o julgamento da Corte Costituzionale Italiana.
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