O que outros países fazem quando o direito à cidadania entra em conflito com a Constituição
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O que outros países fazem quando o direito à cidadania entra em conflito com a Constituição
A cidadania é o ponto de encontro entre o indivíduo e o Estado.
Quando esse vínculo entra em crise, o que está em jogo não é apenas um documento, mas a própria definição de quem pertence à comunidade política.
A Itália vive hoje esse dilema com a Lei 74/2025, que restringe o ius sanguinis sob o argumento de proteger a "coerência nacional".
Mas não está sozinha.
Outros países já enfrentaram o mesmo tipo de conflito — e suas soluções ajudam a entender por que o caminho italiano é o mais arriscado de todos.
1. Alemanha: o equilíbrio entre sangue e solo
A Alemanha reformou sua lei de cidadania em 2000, combinando o ius sanguinis (direito de sangue) com o ius soli (direito de solo).
O objetivo foi incluir filhos de imigrantes nascidos em território alemão sem excluir descendentes de alemães no exterior.
O modelo alemão não aboliu o pertencimento por origem, apenas o complementou.
E, o mais importante, a transição foi planejada.
O Bundestag fixou prazos, preservou os direitos anteriores e reconheceu o valor histórico da diáspora alemã.
Resultado: nenhum cidadão perdeu a nacionalidade por reforma legislativa.
O direito foi adaptado, não apagado.
A lição é simples: modernizar não é romper.
É evoluir com coerência constitucional.
2. Espanha: reparação histórica e estabilidade jurídica
A Espanha oferece outro exemplo emblemático.
Entre 2007 e 2022, o país aprovou leis de memória histórica e de netos de espanhóis exilados, reconhecendo o direito à nacionalidade a milhões de descendentes.
O foco foi restaurar a continuidade familiar interrompida pelo exílio e pela guerra civil.
Mesmo diante de discussões políticas intensas, a Espanha nunca impôs retroatividade nem retirou direitos adquiridos.
Pelo contrário: criou mecanismos transitórios, com prazos longos, critérios claros e garantias de recurso.
Nenhum processo foi anulado por mudança legislativa.
A cidadania espanhola foi tratada como valor de reparação, não como instrumento de exclusão.
3. Portugal: estabilidade e inclusão
Portugal é o modelo mais próximo da racionalidade jurídica.
O país adotou uma postura de ampliação gradual, incluindo netos e bisnetos de portugueses, sem alterar retroativamente direitos já reconhecidos.
O ponto central foi a previsibilidade.
As leis portuguesas foram estruturadas com cláusulas de salvaguarda, garantindo que quem já havia iniciado o processo permanecesse sob a regra antiga.
Além disso, o país reforçou a conexão cultural com a diáspora, considerando o ius sanguinis não como um risco à identidade nacional, mas como sua extensão natural.
Em Portugal, cidadania é ponte, não barreira.
4. França: cidadania como contrato republicano
A França, berço da ideia moderna de República, sempre tratou a cidadania como expressão da adesão a valores comuns.
Mas, mesmo lá, o princípio de igualdade impede que o legislador crie distinções entre franceses natos e franceses de origem.
Quando há conflito entre política migratória e princípios constitucionais, a Corte Constitucional Francesa reafirma o primado da igualdade e da dignidade humana.
Nenhuma reforma legislativa recente conseguiu restringir a nacionalidade sem base constitucional sólida.
A França reconhece que o vínculo jurídico com a nação não pode ser manipulado para fins políticos.
5. Estados Unidos: precedentes contra retroatividade
Nos Estados Unidos, a Suprema Corte firmou há décadas uma posição intransigente contra a perda arbitrária da cidadania.
Em casos como Afroyim v. Rusk (1967) e Vance v. Terrazas (1980), a Corte decidiu que o Estado não pode retirar a cidadania de quem não manifestou intenção voluntária de renunciá-la.
Essas decisões consolidaram o entendimento de que a cidadania é direito fundamental e que sua retirada fere o devido processo constitucional.
Mesmo em contextos de guerra ou segurança nacional, a Suprema Corte manteve a linha: a cidadania não é favor do governo.
É um status permanente, protegido pela Constituição.
6. O contraste com a Itália
A Itália está indo na direção oposta.
Em vez de fortalecer a coerência constitucional, criou uma ruptura entre passado e presente.
A Lei 74/2025 e o DDL 1450 caminham no sentido inverso ao das democracias maduras: introduzem retroatividade, eliminam transições e condicionam a cidadania a fatores externos ao vínculo familiar.
Nenhum país democrático retirou cidadania de seus descendentes com base em critérios de residência ou de "vínculo efetivo".
A Itália é, hoje, o único Estado europeu que tenta reescrever o conceito de pertencimento sem base constitucional legítima.
7. O papel da Corte Costituzionale
A força do constitucionalismo está em sua capacidade de autodefesa.
Cabe à Corte Costituzionale fazer o que outros tribunais constitucionais já fizeram: reafirmar que a cidadania é um direito permanente, protegido contra revisões arbitrárias.
A Corte tem o dever de impedir que a política destrua o que a Constituição consagrou.
E, se seguir o exemplo europeu, deverá reconhecer que a cidadania iure sanguinis é compatível com os valores da República — não sua ameaça.
Conclusão
Quando o direito à cidadania entra em conflito com a Constituição, as democracias maduras escolhem o caminho da coerência, não da ruptura.
Elas ajustam, corrigem e modernizam, mas nunca negam a origem de quem pertence à nação.
O caso italiano é uma lição sobre como o excesso de zelo político pode gerar desequilíbrio jurídico e descrédito internacional.
A Constituição de 1948 oferece todas as ferramentas para corrigir esse rumo.
Basta que o Estado italiano se lembre de que a cidadania é o nome jurídico do pertencimento — e o pertencimento não se apaga por decreto.
Leia o próximo artigo da série "Você sabe exatamente o que está being discutido?" e entenda tudo que está por trás do julgamento da inconstitucionalidade da Lei 74/2025 na Corte Costituzionale italiana.



