Cidadania como Direito Inviolável

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Cidadania como Direito Inviolável

Cidadania como Direito Inviolável

Cidadania como Direito Inviolável (art. 22 da Constituição Italiana)

A cidadania é o ponto de partida de todos os outros direitos. Sem ela, o indivíduo não pertence a nenhum ordenamento, não tem voz no Estado nem proteção plena da lei. Por isso, a Constituição Italiana foi categórica: "Ninguém pode ser privado, por motivos políticos, da cidadania, do nome ou da capacidade jurídica." (art. 22).

Essa frase, curta e direta, encerra um dos pilares do constitucionalismo moderno. Ela nasceu do trauma histórico de um país que, sob o fascismo, retirou cidadanias por origem, religião ou convicção. O artigo 22 é, portanto, uma cláusula moral: a cidadania não pertence ao Estado, pertence à pessoa.

A natureza personalíssima da cidadania

O status civitatis é o vínculo jurídico que expressa o pertencimento político, histórico e moral de um indivíduo à comunidade nacional. É o primeiro direito da pessoa humana dentro de um ordenamento constitucional. Por isso, o art. 22 o qualifica como inviolável, ou seja, imune à vontade legislativa comum.

A cidadania, uma vez reconhecida, não pode ser revogada, restringida ou reinterpretada de forma a afetar sua essência. Ela não se extingue com o tempo, nem se perde por inércia. É um direito existencial, não um benefício administrativo.

Essa distinção é crucial. O Estado concede documentos, mas reconhece cidadania. E reconhecimento não é ato discricionário, é dever jurídico.

A distorção criada pela Lei 74/2025

A Lei 74/2025 – conversão do Decreto-Lei 36/2025 – tenta condicionar o reconhecimento da cidadania iure sanguinis a fatores externos à origem. Os elementos dessa lei incluem:

  1. O local de nascimento do ascendente
  2. O período de residência
  3. A demonstração de vínculos "efetivos" com a República

Com isso, ela inverte a lógica constitucional. Deixa de reconhecer a cidadania como um fato jurídico (derivado da descendência) e passa a tratá-la como um ato de vontade estatal. Esse movimento representa uma privatização do pertencimento, em que o cidadão precisa provar que "merece" continuar sendo italiano.

O problema não é apenas político. É jurídico e profundo. Porque subordinar o reconhecimento da cidadania a critérios de vínculo ou residência significa transformar um direito inviolável em um contrato condicional.

A armadilha do vínculo efetivo

O conceito de "vínculo efetivo" – introduzido pela Lei 74/2025 e expandido pelo DDL 1450 – é uma contradição em termos. O vínculo é o que legitima o direito, não o que o condiciona. No ius sanguinis, o vínculo é biológico, histórico e jurídico. Não depende de comportamento, de presença física ou de atualização cadastral.

Quando o legislador exige "vínculo efetivo" para manter a cidadania, está impondo um critério político a um fato jurídico. É o mesmo que dizer que um filho pode deixar de ser filho se não telefonar aos pais por vinte e cinco anos. A metáfora parece extrema, mas reflete exatamente a distorção do raciocínio.

A cidadania iure sanguinis é o espelho jurídico da filiação: nasce da origem, não da convivência.

O precedente da Constituição de 1948

O artigo 22 foi pensado como um antídoto contra os abusos de poder do regime fascista, que havia usado o controle da cidadania como instrumento de exclusão e perseguição. Ao declarar o direito "inviolável", a Constituição criou uma barreira explícita: nenhum legislador ordinário pode retirar ou condicionar a cidadania por razões políticas, morais ou administrativas.

A jurisprudência da Corte Costituzionale é constante nesse sentido. Desde as decisões n. 30/1983, 61/1994 e 258/2012, o Tribunal reafirma que a cidadania é um "status primário e permanente", cuja perda só pode ocorrer nos casos estritamente previstos e compatíveis com o princípio de dignidade humana.

Nem mesmo o Parlamento, portanto, pode alterar a substância desse direito.

A tentativa de politização do pertencimento

Ao introduzir critérios específicos, o legislador cria uma forma velada de exclusão política. É o retorno do controle estatal sobre a identidade nacional – agora travestido de "modernização". Os critérios introduzidos incluem:

- Residência mínima de dois anos

- Manutenção de vínculos

- Comprovação de engajamento cívico

O discurso é sutil, mas perigoso: alega que o Estado precisa "assegurar o vínculo cultural e efetivo com a República". Na prática, isso abre caminho para distinguir italianos "verdadeiros" e italianos "formais", como se o pertencimento fosse uma questão de utilidade social.

Mas o art. 22 não protege apenas o cidadão contra a perda arbitrária da cidadania. Ele protege o próprio conceito de República contra a tentação de definir quem é digno de pertencer a ela.

O DDL 1450 e o risco da perda automática

O DDL 1450, apresentado em abril de 2025, leva essa lógica ao extremo. Prevê a perda da cidadania para quem, nascido no exterior e em posse de outra nacionalidade, não mantiver "vínculos efetivos" com a República por 25 anos.

A redação é ambígua e profundamente inconstitucional. Ela parte da suposição de que o pertencimento deve ser periodicamente demonstrado – o que equivale a transformar a cidadania em uma licença renovável.

Mas o direito à cidadania não é uma relação administrativa, é uma condição ontológica reconhecida pela ordem constitucional. Quem é italiano por nascimento o é de forma permanente. Nenhuma ausência física pode apagar um fato jurídico.

A dimensão internacional da proteção

O direito à cidadania, no sistema internacional, é reconhecido como direito humano fundamental. As principais disposições incluem:

- A Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 15) afirma que "todo indivíduo tem direito a uma nacionalidade e ninguém será arbitrariamente privado dela"

- A Convenção Europeia de Direitos Humanos reforça esse entendimento

- A Corte de Estrasburgo já condenou Estados que tentaram restringir cidadanias originárias

A Itália, ao aderir a esses tratados, incorporou tais princípios ao seu sistema constitucional. Por isso, qualquer tentativa de limitação da cidadania por critérios políticos ou territoriais não é apenas inconstitucional – é também contrária ao direito internacional vinculante.

A cidadania como espelho moral da República

A cidadania não é apenas o ponto de partida do direito, mas o espelho do tipo de Estado que se deseja ser. Um Estado que condiciona a cidadania à utilidade do indivíduo cria cidadãos precários. Um Estado que a reconhece como inviolável reafirma a própria essência democrática.

A Constituição de 1948 nasceu da necessidade de impedir que a cidadania voltasse a ser um instrumento de exclusão. Por isso, o art. 22 é mais do que uma norma: é uma declaração moral de não repetição.

Cada tentativa de reinterpretá-lo é uma afronta à memória constitucional da República.

Conclusão

A cidadania italiana iure sanguinis é um direito inviolável, personalíssimo e imprescritível. Ela não pode ser submetida a provas de engajamento, prazos de renovação ou critérios de residência. A Constituição não reconhece graus de italianidade.

A Lei 74/2025 e o DDL 1450, ao impor restrições fundadas em vínculos formais, violam o art. 22 e desfiguram o sentido republicano da cidadania. O Estado não concede a italianidade – apenas a reconhece.

A Corte Costituzionale, ao julgar essa matéria, não decidirá apenas sobre uma lei. Decidirá se a República Italiana continuará fiel à sua própria Constituição.

E, se a resposta for a que a história exige, a cidadania continuará sendo o que sempre foi: um direito inviolável, expressão da dignidade humana e da continuidade da nação italiana.


Por Mariane Baroni

Advogada especializada em Direito Internacional e Constitucional

Diretora Jurídica da Master Cidadania

Autora da série "Você sabe exatamente o que está sendo discutido?", dedicada a traduzir o debate constitucional italiano em linguagem acessível, sem perder o rigor técnico.

A série integra o projeto "A Constituição e a Cidadania", que resultará no e-book homônimo a ser lançado após o julgamento da Corte Costituzionale Italiana.

Leia todos os artigos no blog da Master Cidadania: www.mastercidadania.com.br



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