Como nasce um decreto-legge na Itália (e por que isso importa)

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Como nasce um decreto-legge na Itália (e por que isso importa)

Como nasce um decreto-legge na Itália

Como nasce um decreto-legge na Itália 

Por Mariane Baroni

Nenhum decreto-legge nasce por acaso. Quando nasce sem urgência, nasce fora da Constituição.
Compreender como nasce um decreto-legge é entender não apenas a mecânica do poder, mas os limites que preservam o Estado Democrático de Direito.

O debate sobre a constitucionalidade da Lei 74/2025 — que alterou profundamente o reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis — passa, inevitavelmente, por essa compreensão.
O Decreto-Lei 36/2025, que deu origem à norma hoje questionada, é o caso prático mais didático dos últimos anos sobre o uso indevido de um instrumento excepcional.

1. O que é, de fato, um decreto-legge

Na Itália, o decreto-legge é um instrumento legislativo emergencial.
Está previsto no artigo 77 da Constituição, que permite ao governo adotar medidas com força de lei apenas em casos extraordinários de necessidade e urgência.

Na prática, é uma exceção ao processo democrático.
Enquanto o poder de legislar pertence ordinariamente ao Parlamento, o decreto-legge autoriza o Executivo a agir diretamente, sem debate prévio, quando há um perigo imediato que exige resposta jurídica.
Por isso, a Constituição impõe limites severos: o decreto deve ser motivado, justificado e imediatamente submetido ao Parlamento, que tem 60 dias para convertê-lo em lei.
Sem conversão, o decreto perde eficácia retroativa e deixa de produzir efeitos jurídicos.

Essa arquitetura é o que garante que o decreto-legge seja um instrumento de emergência constitucional, não um atalho político.

2. O caminho institucional de um decreto-legge

O processo começa no Consiglio dei Ministri, o Conselho de Ministros.
É ali que o governo discute e aprova a proposta, normalmente redigida por um ou mais ministérios competentes.
No caso do Decreto-Lei 36/2025, a iniciativa partiu do Ministério do Interior, com apoio técnico do Ministério das Relações Exteriores, sob o pretexto de "reorganizar o sistema de cidadania italiana no exterior".

Após a aprovação pelo Conselho, o decreto é imediatamente publicado no Gazzetta Ufficiale, adquirindo força de lei provisória.
No mesmo dia, o governo o apresenta ao Parlamento — à Camera dei Deputati e ao Senato della Repubblica —, que deve iniciar o exame político e constitucional do texto.

O prazo de 60 dias é improrrogável.
Se o Parlamento não o converter em lei, o decreto caduca, e todos os seus efeitos desaparecem.

Mas o ponto central é este: a conversão não pode convalidar um vício de origem.
Se o decreto nasceu sem urgência real, ele é formalmente inconstitucional, mesmo que depois tenha sido transformado em lei.

3. Quando o decreto vira abuso

O problema do Decreto-Lei 36/2025 é justamente esse.
Não havia urgência, nem fato extraordinário, nem risco institucional que justificasse a medida.

O tema da cidadania italiana iure sanguinis é objeto de debate jurídico há décadas.
Não surgiu em março de 2025, não representava perigo imediato à ordem pública e tampouco havia qualquer "colapso administrativo" que exigisse intervenção emergencial.
O que existia era uma agenda política: conter a crescente judicialização dos processos de cidadania e criar restrições de acesso travestidas de racionalização administrativa.

Ou seja, o governo utilizou o instrumento do decreto-legge para finalidades políticas, não para uma necessidade extraordinária.
Isso é o que o direito constitucional define como desvio de finalidade.

4. O artigo 77 da Constituição e a defesa da forma

O artigo 77 da Constituição Italiana não deixa margem de interpretação:

"Quando, em casos extraordinários de necessidade e urgência, o Governo adota medidas provisórias com força de lei, deve apresentá-las no mesmo dia às Câmaras, que, mesmo se dissolvidas, são convocadas para se reunir dentro de cinco dias."

Essa redação consagra a reserva de urgência real.
O decreto-legge só é legítimo se a urgência for objetiva, verificável e proporcional.

A Corte Costituzionale, guardiã da Constituição, consolidou esse entendimento em diversas decisões — entre elas, as sentenças 22/2012, 220/2013 e 171/2007 — declarando inconstitucionais decretos que usurparam a função legislativa do Parlamento.
Esses precedentes firmaram uma linha clara: o abuso do decreto-legge é um vício formal insanável.

5. O papel do Parlamento e a falácia da conversão

A conversão parlamentar é frequentemente interpretada como uma chancela política, mas não é uma absolvição constitucional.
O Parlamento pode até aprovar o texto, mas isso não convalida a violação da forma.
Quando a origem do ato é ilegítima, o vício contamina toda a norma.

No caso da Lei 74/2025, a conversão apenas perpetuou a irregularidade.
O Parlamento transformou em lei uma medida que nasceu fora dos parâmetros do artigo 77, reproduzindo um erro de forma e de princípio.
A Constituição não permite que o conteúdo prevaleça sobre a legalidade do procedimento.

6. O custo institucional do abuso

Usar o decreto-legge sem urgência real compromete a separação de poderes.
O Executivo assume o papel de legislador e o Parlamento se reduz a um órgão ratificador.
É a inversão do equilíbrio democrático.

Além disso, a banalização do decreto cria um precedente perigoso.
Se um governo pode legislar por decreto quando não há urgência, qualquer tema — da economia à cidadania — pode ser regulado sem debate, análise técnica ou controle parlamentar efetivo.

Essa distorção não é apenas jurídica, é institucional.
Ela mina a credibilidade do sistema e enfraquece o princípio da legalidade.

7. Por que isso importa

Porque forma é substância.
Porque o modo como uma lei nasce define se ela é legítima ou apenas conveniente.

O Decreto-Lei 36/2025 foi o gatilho de um processo de erosão constitucional.
Transformou um instrumento excepcional de defesa da República em mecanismo de restrição de direitos individuais.
O resultado é a Lei 74/2025, hoje sob julgamento na Corte Costituzionale, por violar não apenas princípios materiais, mas também o devido processo legislativo.

A cidadania italiana iure sanguinis não é uma concessão.
É um direito derivado da história e reconhecido pela Constituição.
Quando uma lei nasce fora dos limites constitucionais, ela não apenas atinge esse direito — ela desrespeita a própria ideia de República.

Leia o próximo artigo da série "Você sabe exatamente o que está sendo discutido?" e entenda tudo que está por trás do julgamento da inconstitucionalidade da Lei 74/2025 na Corte Costituzionale italiana.



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