O abuso do decreto-legge: forma viciada, efeito ilegítimo

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O abuso do decreto-legge: forma viciada, efeito ilegítimo

O abuso do decreto-legge: forma viciada, efeito ilegítimo

Um decreto-lei que nasce sem urgência já nasce ilegítimo.

O Decreto-Lei n. 36, de 28 de março de 2025, é o retrato de um instrumento constitucional distorcido por conveniência política. Foi apresentado como uma resposta emergencial à suposta desordem no sistema de reconhecimento da cidadania italiana, mas na realidade traduziu um movimento calculado de restrição de direitos, conduzido sob o rótulo de urgência.

A Constituição Italiana é clara: o decreto-legge existe para enfrentar situações extraordinárias e imprevisíveis. Quando o governo o utiliza para resolver questões estruturais e de longo prazo, a medida deixa de ser técnica e se torna política. E quando a política ignora os limites constitucionais, o resultado é uma norma contaminada em sua própria origem.

O que é um decreto-legge e por que ele exige cautela

O decreto-legge é uma ferramenta excepcional do ordenamento jurídico italiano. Previsto no artigo 77 da Constituição, ele permite que o governo adote medidas com força de lei em casos de necessidade e urgência comprovadas, devendo submetê-las ao Parlamento dentro de sessenta dias para conversão.

O legislador constituinte concebeu esse instrumento como uma válvula de escape democrática. Ele só deve ser utilizado quando o tempo parlamentar ordinário se torna incompatível com a proteção imediata do interesse público. A sua natureza é emergencial, não programática.

A Corte Costituzionale, ao longo de décadas, consolidou o entendimento de que o decreto-legge é admissível apenas diante de eventos concretos, imprevisíveis e graves, que tornem indispensável a intervenção imediata do governo. A urgência deve ser real, não retórica.

Quando o Executivo recorre ao decreto para tratar de temas sem caráter emergencial, ocorre o que a própria Corte já classificou como "abuso do instrumento constitucional". E foi exatamente isso que aconteceu em 2025.

A ausência de urgência no Decreto-Lei 36/2025

O Decreto-Lei 36 foi editado em um contexto de estabilidade institucional. Nenhum evento extraordinário justificava o uso da via emergencial. Não houve crise de segurança nacional, ruptura diplomática ou necessidade financeira imediata.

A justificativa oficial alegava "reorganizar o sistema de reconhecimento da cidadania italiana e assegurar maior eficiência administrativa". Trata-se de uma matéria estrutural, que exige debate legislativo regular, não intervenção de urgência.

A suposta emergência se limitava ao aumento de processos judiciais de reconhecimento da cidadania iure sanguinis. Entretanto, o crescimento da demanda judicial não é fenômeno súbito nem imprevisível. É resultado de um movimento social e histórico, amplamente conhecido, de descendentes de italianos buscando o reconhecimento de um direito que lhes pertence por origem.

Nada nesse cenário poderia justificar a adoção de um decreto-legge. O governo criou a urgência que alegava combater.

A violação direta do artigo 77 da Constituição

O artigo 77 da Constituição italiana é um dispositivo de proteção institucional. Ele estabelece que o governo só pode adotar decretos com força de lei em casos extraordinários de necessidade e urgência, devendo submetê-los ao Parlamento no mesmo dia.

A Corte Costituzionale já declarou reiteradamente que o uso indevido do decreto-legge é inconstitucional. Nas sentenças n. 22 de 2012 e n. 220 de 2013, reafirmou que a ausência de motivação concreta sobre a urgência torna o decreto formalmente inválido.

O Decreto-Lei 36/2025 nasceu sem urgência real, violando de forma frontal o artigo 77. Foi uma medida política, travestida de técnica legislativa, emitida para satisfazer pressões de setores administrativos e diplomáticos, não para proteger o interesse público.

A sua conversão posterior em lei (Lei n. 74/2025) não corrige o vício de origem. A jurisprudência da Corte é firme ao afirmar que a aprovação parlamentar não sana a inconstitucionalidade de um decreto que nasce sem os requisitos exigidos. Uma lei convertida a partir de um ato inconstitucional continua materialmente inválida.

O desvio de finalidade: urgência aparente, finalidade política

A utilização indevida do decreto-legge para temas de cidadania revela desvio de finalidade. A medida não foi editada para conter um dano iminente à ordem pública, mas para restringir o acesso à cidadania italiana iure sanguinis e reduzir o volume de processos judiciais.

O objetivo real não era emergencial, mas administrativo. O governo buscou aliviar a sobrecarga dos tribunais e consulados, interferindo em direitos individuais consolidados. Essa manobra viola não apenas o artigo 77, mas também o princípio da legalidade e da separação dos poderes.

O Executivo não pode usar a prerrogativa da urgência para legislar sobre matéria de cidadania. Trata-se de um direito fundamental, protegido pelos artigos 3 e 22 da Constituição, que exige debate parlamentar pleno.

O desvio é evidente: o decreto foi usado como atalho político para alterar uma lei de base constitucional, sem o devido processo democrático.

A conversão parlamentar e o mito da legitimidade posterior

Muitos defendem que, uma vez convertido em lei, o decreto-legge ganha legitimidade. Essa interpretação é incorreta. A Corte Costituzionale já decidiu, na sentença n. 171 de 2007, que a conversão não pode sanar um vício de origem formal ou substancial.

A Constituição não admite que um ato nulo se torne válido apenas porque foi confirmado pelo Parlamento. O princípio da continuidade do vício é claro: o que nasce inconstitucional permanece inconstitucional.

Assim, a Lei 74/2025, derivada do Decreto-Lei 36/2025, carrega consigo o mesmo defeito genético. Ela é o produto de uma forma viciada e, portanto, não pode produzir efeitos legítimos sobre direitos fundamentais.

A origem contamina o conteúdo.

Os efeitos da ilegitimidade: uma cadeia de nulidades

Quando a forma é violada, o conteúdo perde validade.

O artigo 3-bis introduzido pela Lei 74/2025, que restringe o reconhecimento da cidadania por descendência, é fruto de um decreto sem urgência real. Consequentemente, toda a estrutura normativa construída a partir desse decreto está sob risco de nulidade constitucional.

Não se trata de uma questão política ou ideológica, mas de técnica jurídica.

Uma lei que restringe direitos fundamentais precisa nascer de um processo legislativo legítimo.

O uso indevido do decreto-legge distorce o equilíbrio entre os poderes e fere a essência do Estado Democrático de Direito.

Ao adotar um instrumento emergencial para redefinir o conceito de cidadania, o governo violou o pacto constitucional. O que deveria ser uma exceção tornou-se um expediente. E expedientes não sustentam direitos.

A cidadania como limite à urgência

A cidadania é o núcleo da identidade jurídica do indivíduo. Ela define a relação entre o cidadão e o Estado, assegurando direitos e deveres recíprocos. Nenhum governo pode modificar essa relação sem debate público, sem tempo para análise parlamentar e sem justificativa legítima de urgência.

A Constituição de 1948 nasceu da rejeição ao autoritarismo e à arbitrariedade. Por isso, limitou o poder do Executivo e colocou o Parlamento como guardião do processo legislativo.

Quando o governo ultrapassa esses limites, o Estado de Direito é o primeiro a ser ferido.

A cidadania não pode ser objeto de pressa. A pressa legislativa é inimiga da legitimidade.

O precedente perigoso

O abuso do decreto-legge para restringir direitos civis cria um precedente institucional grave.

Se o governo pode, sob pretexto de urgência, alterar o conceito de cidadania, amanhã poderá fazer o mesmo com qualquer outro direito fundamental.

O precedente jurídico não se encerra no tema da cidadania italiana. Ele abre a porta para a erosão progressiva da Constituição.

A Corte Costituzionale, ao examinar a legitimidade da Lei 74/2025, tem diante de si mais do que um caso técnico. Tem a responsabilidade de reafirmar o princípio de que a forma é também substância. Sem respeito à forma constitucional, não há Estado de Direito, há apenas conveniência política travestida de legalidade.

Conclusão

O Decreto-Lei 36/2025 é um ato formalmente inconstitucional e materialmente ilegítimo.

Foi emitido sem urgência real, sem necessidade extraordinária e sem justificativa concreta, violando o artigo 77 da Constituição Italiana. A sua conversão em lei não corrige o vício de origem e, por isso, todos os efeitos derivados dessa norma estão juridicamente comprometidos.

A cidadania italiana iure sanguinis é um direito histórico, civil e constitucional. Nenhuma medida editada por conveniência administrativa pode restringi-la. A forma é o primeiro pilar da legitimidade. Quando ela é violada, o conteúdo deixa de ser direito e se transforma em arbítrio.


Por Mariane Baroni

Advogada especializada em Direito Internacional e Constitucional

Diretora Jurídica da Master Cidadania

Autora da série "Você sabe exatamente o que está sendo discutido?", dedicada a traduzir o debate constitucional italiano em linguagem acessível, sem perder o rigor técnico.

A série integra o projeto "A Constituição e a Cidadania", que resultará no e-book homônimo a ser lançado após o julgamento da Corte Costituzionale Italiana.

Leia todos os artigos no blog da Master Cidadania

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