O Tribunal de Mantova e a reafirmação constitucional do direito à cidadania italiana iure sanguinis
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O Tribunal de Mantova e a reafirmação constitucional do direito à cidadania italiana iure sanguinis
Por Dra. Mariane Baroni
A decisão do Tribunal de Mantova, proferida em 24 de outubro de 2025, representa o segundo e mais consistente golpe na estrutura jurídica do artigo 3-bis da Lei n.º 91/1992, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 36/2025, convertido na Lei n.º 74/2025.
Com rigor técnico e absoluta clareza, o colegiado de Mantova reproduz, amplia e consolida os fundamentos da Ordinanza n.º 167/2025 do Tribunal de Torino, enviando novamente à Corte Costituzionale uma questão que ultrapassa o contencioso individual e toca o próprio núcleo da identidade republicana italiana: a continuidade do vínculo de cidadania transmitido pelo sangue.
A decisão é cirúrgica. Reconhece que o novo art. 3-bis, ao declarar que "não adquiriu jamais a cidadania italiana quem nasceu no exterior, ainda que antes da entrada em vigor do presente artigo", violou frontalmente a Constituição.
Não se trata de uma simples divergência interpretativa. Trata-se de um choque sistêmico entre o Estado de Direito e um decreto-legge que tenta reescrever retroativamente a história civil italiana, apagando, com um traço de caneta, séculos de reconhecimento do ius sanguinis como princípio estruturante da nacionalidade.
Desde o Código Civil de 1865 até a Lei n.º 91 de 1992, a regra foi sempre a mesma: é cidadão italiano quem nasce de pai ou mãe italianos.
Essa qualidade não depende de registro, de vontade ou de procedimento. Ela nasce com a pessoa. É um status originário, imprescritível e indisponível – uma qualidade ontológica e não concessória.
Foi exatamente isso que Mantova reafirmou, com base nas Sezioni Unite da Cassazione n.º 25318/2022 e n.º 4466/2009, construindo uma ponte direta com os fundamentos que muitos juristas, inclusive esta autora, vêm defendendo desde o início da crise provocada pelo Decreto 36/2025.
O caso concreto: um espelho da distorção normativa
O processo teve início a partir de um recurso ex art. 95 D.P.R. 396/2000, interposto contra o Comune di Canneto sull'Oglio, que havia recusado a transcrição do ato de nascimento de um menor nascido no Brasil, filho de mãe reconhecida como cidadã italiana iure sanguinis por sentença transitada em julgado.
O raciocínio é elementar: se a mãe é cidadã italiana por sangue, o filho, nascido de seu ventre, é italiano desde o nascimento. Não há espaço para ato volitivo, prazo ou formalidade constitutiva. O status nasce com o fato.
Mesmo assim, o Comune negou a transcrição com base no novo art. 3-bis – sustentando que, por não ter sido apresentada nenhuma solicitação antes das 23h59 de 27 de março de 2025, o menor "jamais teria adquirido" a cidadania italiana.
O Tribunal de Mantova desmantelou essa lógica por completo, apontando o erro estrutural de se tentar aplicar retroativamente uma norma que modifica o conceito de aquisição originária.
A questão de fundo: o abuso da retroatividade
O cerne da decisão está na constatação de que o art. 3-bis não é meramente procedimental: ele redefine o próprio fato gerador da cidadania italiana.
Ao afirmar que "é considerado como não tendo jamais adquirido" a cidadania quem nasceu no exterior antes de 27 de março de 2025, a norma revoga ex tunc um status já adquirido – o que equivale, na prática, à privação da cidadania.
O Tribunal foi categórico: ainda que o legislador tenha tentado camuflar a medida sob a aparência de uma "preclusão ao reconhecimento", o resultado material é o mesmo que uma perda automática de cidadania.
E isso é vedado pelo artigo 22 da Constituição, que proíbe a privação da cidadania por motivos políticos – inclusive sob a forma de exclusões genéricas motivadas por conveniência estatal.
Violação dos direitos fundamentais e da lógica republicana
A decisão percorre com precisão os pilares constitucionais que sustentam a tese de inconstitucionalidade:
Artigo 22 – direito à cidadania como qualidade essencial da pessoa
A cidadania não é uma concessão do Estado, mas a expressão jurídica da pertença a uma comunidade política. A retroatividade do art. 3-bis nega essa natureza essencial, transformando um direito originário em um privilégio sujeito a prazo administrativo.
Artigo 3 – igualdade e confiança legítima
O Tribunal observa que a retroatividade rompe o princípio de confiança que todo cidadão deposita na estabilidade da ordem jurídica. Milhares de descendentes de italianos, nascidos antes de março de 2025, tinham legítima expectativa de obter o reconhecimento de um direito já existente.
A lei nova não poderia transformar esse direito em benefício condicional, muito menos de forma arbitrária, com prazos de 24 horas e critérios fora do controle do cidadão.
Artigo 2 – violação de um direito inviolável
A cidadania iure sanguinis é tratada, historicamente, como um direito natural, pré-existente à intervenção estatal. Negar esse caráter originário equivale a negar a própria dignidade jurídica da pessoa. Ao exigir "pedido" para reconhecer o que já é fato consumado, o Estado rebaixa um direito em favor administrativo.
Artigo 24 – limitação indevida do acesso à justiça
O art. 3-bis não concedeu sequer um prazo razoável de transição. Quem não havia ainda ingressado com ação judicial ou pedido consular até 27/03/2025 foi, de um dia para o outro, colocado fora do ordenamento. Isso fere o direito à tutela jurisdicional efetiva: ninguém pode ser privado de seu direito sem possibilidade real de defesa.
Artigos 56, 58 e 1, §2 – lesão ao princípio democrático e à soberania popular
Ao redefinir retroativamente quem é cidadão italiano, a norma altera o corpo eleitoral e, portanto, o próprio fundamento da representação política. O povo italiano não pode ser reduzido por decreto.
A soberania pertence ao povo – e o povo inclui todos os italianos, onde quer que estejam.
Artigos 72 e 77 – uso ilegítimo do decreto-lei
O Tribunal desmonta, com rara lucidez, o argumento da "urgência".
A questão da sobrecarga de processos de cidadania é conhecida há décadas; nada nela justifica a adoção de um decreto-lei. Mais grave: a matéria da cidadania é coberta por reserva de assembleia, exigindo discussão parlamentar plena, e não um ato unilateral do Executivo. O governo utilizou o instrumento excepcional do decreto para redesenhar o corpo político da nação – algo constitucionalmente proibido.
Artigo 117 – violação de tratados internacionais
Por fim, a decisão lembra que a medida fere os compromissos assumidos pela Itália perante a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (art. 14) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 26), ambos garantindo o princípio da não discriminação e da proteção contra privação arbitrária de nacionalidade.
A conexão direta com o caso de Torino e a tese consolidada
Mantova não está isolada.
Em setembro, o Tribunal de Torino, na Ordinanza n.º 167/2025, já havia remetido questão semelhante à Corte Constitucional, reconhecendo a inconstitucionalidade parcial do art. 3-bis pelos mesmos motivos – violação dos artigos 2, 3, 22 e 77 da Constituição.
O que torna Mantova ainda mais relevante é o grau de aprofundamento: o colegiado amplia o debate, incluindo também a violação da reserva de assembleia (art. 72) e dos direitos políticos (arts. 56 e 58), além de articular de forma sistêmica o conceito de revogação ex tunc de status civitatis.
Em linguagem simples, o tribunal afirmou aquilo que os juristas críticos do Decreto 36/2025 vêm repetindo desde março: não se pode revogar uma cidadania que já existia antes da lei.
Essa construção está na base da tese que eu própria venho sustentando nos tribunais e nos artigos técnicos desde o início da crise normativa: a cidadania iure sanguinis é um direito originário, não um procedimento de aquisição; as sentenças que o reconhecem têm natureza declarativa, não constitutiva; e qualquer norma que imponha restrições retroativas viola o núcleo duro da Constituição republicana.
A natureza declarativa do reconhecimento judicial
Um dos pontos mais relevantes da decisão de Mantova é o reconhecimento explícito de que as sentenças de cidadania iure sanguinis não criam um novo direito, apenas declaram um fato jurídico preexistente.
O tribunal cita expressamente as Sezioni Unite de 2009 e 2022, reforçando que "lo status di cittadino, una volta acquisito, ha natura permanente ed è imprescrittibile".
Essa passagem tem peso doutrinário enorme. Se a sentença é declarativa, não há como o Estado, por meio de lei posterior, retroagir e dizer que o direito nunca existiu. A lógica é incompatível com qualquer sistema jurídico minimamente coerente.
A tentativa do legislador de reclassificar o passado é um ato de revisionismo jurídico – e a Constituição italiana não tolera revisionismo quando se trata de direitos fundamentais.
O princípio da confiança legítima e o Estado de Direito
Outro ponto decisivo da decisão é a recuperação do princípio da confiança legítima (legittimo affidamento), consagrado pela jurisprudência constitucional italiana e europeia.
O cidadão deve poder confiar na estabilidade da lei, especialmente quando se trata de um direito declarado por decisões judiciais e sedimentado por décadas de prática administrativa.
A modificação abrupta e retroativa, sem fase de transição, destrói essa previsibilidade, o que configura irrazionalità normativa – termo usado pela própria Corte Constitucional em precedentes sobre retroatividade indevida.
A confiança legítima é o cimento do Estado de Direito. Sem ela, nenhuma cidadania é segura; nenhum vínculo jurídico é confiável. E é precisamente isso que está em jogo na discussão sobre o art. 3-bis: a confiança de milhões de descendentes de italianos que sempre viveram acreditando, com base na lei e na jurisprudência, que o sangue italiano transmitia a cidadania por direito natural.
A dimensão política do problema: o uso do medo como pretexto
O Tribunal de Mantova vai além da análise estritamente técnica. Ele expõe o que muitos preferem evitar: o uso político do argumento da "segurança nacional" para justificar a supressão de direitos fundamentais.
O decreto-lei afirma que o crescimento do número de descendentes reconhecidos no exterior seria um "risco para a segurança do Estado e da União Europeia". A retórica é frágil – e perigosa.
Ao invocar o medo como fundamento jurídico, o governo abre a porta para a manipulação política da cidadania, convertendo um direito civil em instrumento de controle.
O tribunal desmonta essa narrativa com serenidade institucional: a sobrecarga de processos não é emergência, é gestão ineficiente. Problemas administrativos se resolvem com estrutura, não com mutilação de direitos. A Constituição não pode ser sacrificada em nome da burocracia.
O retorno à matriz republicana do ius sanguinis
O que está em discussão não é o número de processos nem o impacto consular. O que está em discussão é a própria continuidade histórica da República.
A cidadania italiana é o elo entre o passado e o presente – um laço que atravessa oceanos, guerras e gerações. Negar esse laço é negar a história da Itália como nação de emigrantes.
A Constituição de 1948 foi escrita para restaurar a dignidade dos cidadãos, não para restringi-la a quem permaneceu fisicamente no território nacional.
O Tribunal de Mantova reafirma esse espírito com precisão cirúrgica: o Estado pode modernizar seus procedimentos, mas não pode reescrever o passado. O sangue não prescreve. A cidadania não é um benefício; é um pertencimento.
O que esperar da Corte Costituzionale
Com duas remessas formais – Torino (Ordinanza n. 167/2025) e Mantova (Ordinanza de 24.10.2025) –, a Corte Costituzionale terá diante de si uma questão inevitável: até que ponto o Estado pode negar um direito já formado?
Se seguir sua linha tradicional, a Corte deverá declarar a inconstitucionalidade parcial do art. 3-bis, garantindo a tutela dos direitos adquiridos e a constitucionalidade do pertencimento.
Essa solução recoloca a cidadania italiana no seu verdadeiro lugar: o de direito originário e imprescritível, expressão da continuidade familiar, histórica e constitucional da República.
Convergência entre Mantova, Torino e a Tese de Defesa da Master Cidadania
| Ponto de Análise | Tribunal de Mantova (24.10.2025) | Tribunal de Torino (Ordinanza n. 167/2025) | Tese de Defesa |
|---|---|---|---|
| Natureza da cidadania iure sanguinis | Direito originário, imprescritível e independente de qualquer procedimento. | Idêntica: direito adquirido ab origine. | Idêntica: direito originário, existente desde o nascimento. |
| Natureza da sentença judicial | Declarativa, não constitutiva. | Declarativa, não constitutiva. | Declarativa, não constitutiva. |
| Efeitos retroativos do art. 3-bis | Inconstitucionais, equivalem a revogação ex tunc. | Inconstitucionais. | Ponto central da tese: violação do princípio da irretroatividade e da confiança legítima. |
| Parâmetros constitucionais violados | Arts. 1, 2, 3, 22, 24, 56, 58, 72, 77, 117 Cost. | Arts. 2, 3, 22, 77 Cost. | Os mesmos artigos |
| Reserva de assembleia (art. 72) | Enfatizada: matéria de cidadania exige lei formal aprovada pelo Parlamento. | Não abordada. | Defendida desde março/2025. |
| Urgência e decreto-lei | Ausência de urgência real; abuso do instrumento. | Mesma conclusão implícita. | Ponto enfatico: abuso político da decretazione d'urgenza. |
| Princípio do vínculo efetivo (legame effettivo) | Pode ser preservado sem retroatividade. | Concorda. | Idem, com interpretação constitucionalmente orientada. |
| Remédio sugerido à Corte | Declaração de inconstitucionalidade parcial, limitando efeitos para o futuro. | Idêntico. | Declaração de inconstitucionalidade da Lei 74/2025 |
Conclusão
O Tribunal de Mantova confirmou o que a Master Cidadania sempre soube: ninguém pode perder o que nasce com o sangue. A cidadania italiana iure sanguinis não é um privilégio, é uma herança constitucional. Ao reenviar o caso à Corte Costituzionale, Mantova não defendeu apenas um menor brasileiro, defendeu a coerência de todo o ordenamento jurídico italiano.
Quando dois tribunais de primeira instância, em diferentes regiões, convergem no mesmo raciocínio constitucional, não estamos diante de uma coincidência: estamos diante de uma tendência irreversível de restauração da legalidade.
O direito está voltando ao seu eixo.
E o eixo da cidadania italiana sempre foi – e continuará sendo – o sangue, a história e a Constituição.
O momento, porém, exige decisão.
Enquanto os Tribunais e a Corte Costituzionale estão decidindo o futuro da cidadania italiana, com a derrubada da Lei 74/2025, o governo italiano projeta o DDL 2369-A, que prevê a criação de um órgão central em Roma para concentrar todos os pedidos de cidadania.
Por outro lado, o Tribunal de Veneza já mobilizou vinte e dois magistrados dedicados exclusivamente aos processos de reconhecimento iure sanguinis, com a meta de concluir 90% dos casos até 2026.
E não é só Veneza: todos os tribunais italianos estão antecipando as audiências, em cumprimento às metas de eficiência impostas pelo PNRR – Piano Nazionale di Ripresa e Resilienza, que acelerou de forma inédita a tramitação dos processos civis.
Ou seja: quem já confiou na Justiça italiana verá seu processo andar com velocidade inédita; quem ainda não protocolou, está diante da melhor – e talvez última – grande janela de aceleração.
A pergunta é simples e direta: você vai aguardar 2028 e a nova estrutura estatal, ou vai agir agora, enquanto a porta ainda está aberta?
Dra. Mariane Baroni
Advogada – Especialista em Direito Constitucional e Internacional
Diretora Jurídica da Master Cidadania

