Os filhos do limbo: o direito do menor à cidadania

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Os filhos do limbo: o direito do menor à cidadania

Os filhos do limbo: o direito do menor à cidadania

O direito do menor à cidadania

Entre todas as distorções criadas pela Lei 74/2025, talvez nenhuma seja tão grave quanto aquela que atinge os menores de idade. Sob o pretexto de "ordenar" o reconhecimento da cidadania italiana, o legislador acabou violando princípios fundamentais de proteção à infância e à unidade familiar.

A cidadania, quando se trata de crianças, não é apenas um status jurídico. É o elo que assegura pertencimento, continuidade e identidade. Negar ou adiar esse reconhecimento é criar um limbo legal e emocional que a Constituição não admite.

A proteção integral da criança como princípio constitucional

O artigo 30 da Constituição Italiana estabelece que os pais têm o dever e o direito de manter, instruir e educar os filhos, mesmo se nascidos fora do casamento. E o artigo 31 impõe à República o dever de proteger a infância com medidas econômicas e jurídicas adequadas.

Esses dispositivos não são simbólicos, são imperativos. A cidadania é parte desse conjunto de proteções, pois garante ao menor o exercício pleno de direitos civis, políticos e sociais.

Quando o Estado posterga ou condiciona o reconhecimento da cidadania de um menor, ele não está apenas criando um problema burocrático – está ferindo o núcleo essencial do direito à identidade.

O que muda com a Lei 74/2025

A Lei 74/2025, ao alterar o texto da Lei n. 91/1992, introduziu um novo parágrafo (art. 4, comma 1-bis) que prevê que o menor, filho de cidadão italiano por nascimento, só adquire a cidadania se os pais declararem a vontade de transmiti-la e se, após a declaração, o menor residir legalmente por pelo menos dois anos na Itália.

Na prática, isso significa que uma criança nascida fora do território, mesmo filha de cidadão italiano reconhecido, não é automaticamente considerada italiana. Seu direito passa a depender de uma manifestação de vontade dos pais e de um requisito territorial que, muitas vezes, é impossível de cumprir.

O efeito é devastador:

- filhos de famílias em que um dos pais foi reconhecido judicialmente passam a ficar em situação de espera indefinida;
- crianças nascidas no exterior, mesmo com ascendência direta e legítima, ficam sem status até que um juiz, um consulado ou um Comune aceite examinar o caso.

Estamos diante de uma geração de filhos do limbo – menores que são italianos por sangue, mas estrangeiros por lei.

Violação do princípio da unidade familiar

O artigo 29 da Constituição define a família como uma sociedade natural fundada no matrimônio, reconhecida e protegida pela República. A unidade familiar é um valor constitucional absoluto, que impede que o Estado fragmente o núcleo familiar com base em critérios administrativos.

Quando um pai é reconhecido cidadão italiano e seu filho não é, a própria ideia de família deixa de ter coerência jurídica. A cidadania não pode dividir o que a Constituição mandou preservar.

O direito do menor à cidadania é, portanto, um reflexo do direito da família à unidade. Não se trata apenas de proteger o menor, mas de garantir que o vínculo familiar seja reconhecido como um todo.

O paradoxo da residência

O requisito de residência de dois anos na Itália, introduzido pela Lei 74/2025, revela a contradição do modelo atual. Como exigir que uma criança, nascida no exterior e dependente de seus pais, resida legalmente em um país em que não é reconhecida como cidadã?

Esse requisito cria um círculo vicioso impossível de romper: para ter a cidadania, o menor precisa residir na Itália; mas, para residir legalmente na Itália, ele precisaria ser cidadão.

A norma é, portanto, materialmente inexequível, e por isso inconstitucional. Fere o princípio da razoabilidade, o direito à família e o interesse superior da criança, consagrado na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ratificada pela Itália em 1991.

O direito internacional como parâmetro interpretativo

O direito italiano não existe isolado. Desde 1948, o sistema constitucional incorpora e dialoga com o direito internacional, especialmente com os tratados de direitos humanos.

A Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece, em seu artigo 7, que toda criança tem direito a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer e ser cuidada por seus pais. Esses direitos devem ser reconhecidos desde o nascimento, não após um processo administrativo.

Ao condicionar a cidadania do menor a uma manifestação de vontade ou a uma residência específica, o legislador italiano desrespeita esse tratado internacional, produzindo uma violação direta de norma de hierarquia supralegal.

O impacto sobre os processos de cidadania judicial

No campo prático, a mudança legislativa afeta diretamente os processos judiciais em andamento. Hoje, quando um genitor obtém a cidadania italiana por sentença, o reconhecimento de seus filhos menores ocorre de forma imediata, como consequência lógica da decisão.

Com a nova lei, abre-se uma brecha para que as autoridades administrativas neguem a transcrição dos menores, exigindo manifestação de vontade e comprovação de residência – ainda que o próprio tribunal já tenha reconhecido o direito da família.

Isso cria insegurança jurídica e multiplicação de processos desnecessários, contrariando o princípio da economia processual e violando o art. 97 da Constituição, que exige eficiência e legalidade na atuação da administração pública.

A cidadania como extensão da proteção familiar

Em toda a tradição jurídica italiana, a cidadania sempre foi vista como um elemento de continuidade familiar. O filho segue a condição do pai ou da mãe, não por imposição, mas por natureza. Essa lógica atravessa séculos de história e fundamenta o próprio conceito de iure sanguinis.

Quando o Estado rompe essa continuidade, ele interfere no núcleo familiar e transforma a cidadania em um ato de concessão política. Mas a cidadania do menor não é uma escolha do Estado, é uma decorrência do vínculo de sangue e da proteção da infância.

Negar a cidadania a um menor que descende de italianos é, em essência, negar a proteção constitucional da família.

O risco do limbo jurídico

O termo "filhos do limbo" não é uma metáfora poética. Ele descreve a situação concreta de milhares de menores cujas famílias estão com processos em andamento ou já concluídos. Essas crianças, embora descendentes diretos de italianos, passam a depender de interpretações administrativas, atrasos de transcrição e novas exigências sem fundamento legal claro.

O limbo é perigoso porque transforma o direito em expectativa, e o direito da criança não pode ser condicional. A proteção do menor é imediata, integral e inderrogável. Nenhuma lei ordinária pode transformá-la em uma possibilidade futura.

O que a Corte Costituzionale deve enfrentar

Entre as questões levadas à Corte Costituzionale, essa é uma das mais sensíveis. O tribunal não julgará apenas um dispositivo legal, mas um conceito: se o direito à cidadania pode ser negado a uma criança por razões de forma.

A Corte já decidiu, em diversas ocasiões (n. 120/2001, n. 230/2013, n. 142/2025), que os direitos dos menores prevalecem sobre qualquer formalidade administrativa. É razoável esperar que essa linha seja reafirmada.

A Constituição não admite filhos "de segunda categoria". E o direito à cidadania é parte do direito à dignidade.

Conclusão

A Lei 74/2025 criou, de forma indireta, uma nova forma de exclusão: a exclusão dos menores. Ao condicionar o reconhecimento da cidadania a atos de vontade e à residência na Itália, o legislador violou a proteção integral da criança, a unidade familiar e o princípio da igualdade.

A cidadania do menor não é uma concessão, é uma consequência. É o reflexo de um vínculo natural que o Estado tem o dever de reconhecer e proteger.

A Corte Costituzionale terá a responsabilidade de restabelecer essa coerência, reafirmando que o direito do menor à cidadania é um direito fundamental da pessoa humana. E, enquanto isso não ocorre, cabe a nós, operadores do direito, continuar afirmando o óbvio: nenhuma criança pode viver no limbo jurídico.


Por Mariane Baroni

Advogada especializada em Direito Internacional e Constitucional

Diretora Jurídica da Master Cidadania

Autora da série "Você sabe exatamente o que está sendo discutido?", dedicada a traduzir o debate constitucional italiano em linguagem acessível, sem perder o rigor técnico.

A série integra o projeto "A Constituição e a Cidadania", que resultará no e-book homônimo a ser lançado após o julgamento da Corte Costituzionale Italiana.

Leia todos os artigos no blog da Master Cidadania

🌐 www.mastercidadania.com.br



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