Retroatividade e destruição de direitos adquiridos
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                        Retroatividade e destruição de direitos adquiridos
Nenhum direito legítimo pode ser revogado depois de conquistado.
Essa é uma das premissas mais elementares do constitucionalismo moderno, mas também a primeira a ser violada quando o poder político decide instrumentalizar o direito para reescrever o passado.
A Lei 74/2025, convertendo o Decreto-Lei n. 36/2025, introduziu no sistema jurídico italiano uma anomalia perigosa: ela não apenas regula situações futuras, mas busca redefinir o passado. A norma não se limita a produzir efeitos ex nunc, como seria constitucionalmente correto. Ela atua ex tunc, isto é, retroage, afetando direitos que já haviam sido reconhecidos e consolidando um precedente que ameaça o próprio equilíbrio da República.
O princípio da irretroatividade da lei não é apenas uma formalidade jurídica. Ele é a materialização do Estado de Direito, pois garante previsibilidade, estabilidade e confiança entre o cidadão e o Estado.
Quando o poder público cria regras que alteram os efeitos de atos praticados sob uma legislação anterior, ele rompe essa confiança e inaugura um cenário de incerteza institucional.
O princípio do "tempus regit actum" e o valor da confiança jurídica
O ordenamento jurídico italiano, assim como o brasileiro, se funda sobre a máxima "tempus regit actum" — o tempo rege o ato.
Isso significa que todo fato jurídico deve ser avaliado conforme a lei vigente no momento em que ocorreu. Esse princípio, que atravessa séculos de doutrina e jurisprudência, é uma garantia de justiça, mas também de racionalidade do sistema.
Ao subverter essa regra, a Lei 74/2025 criou uma ruptura de ordem: processos já julgados ou em andamento foram atingidos por normas que sequer existiam quando os atos processuais foram praticados.
Em matéria de cidadania, isso equivale a declarar que um italiano, reconhecido como tal em 2023 sob o regime jurídico então válido, pode deixar de sê-lo em 2025 por obra de uma nova lei que decide alterar as condições do seu nascimento.
Essa construção viola não apenas o art. 25 da Constituição Italiana, que veda qualquer forma de retroatividade prejudicial, mas também o art. 3, que assegura a igualdade de tratamento entre cidadãos. Afinal, dois indivíduos em idêntica situação jurídica podem, pela mera mudança de data, ser tratados de forma desigual — um reconhecido como italiano, outro excluído da mesma categoria.
A retroatividade como técnica de poder
As constituições modernas nasceram para conter o poder, não para serví-lo.
Quando o legislador adota a retroatividade como ferramenta política, ele abdica do papel republicano de garantir estabilidade e previsibilidade.
A Lei 74/2025 exemplifica esse desvio: sob o pretexto de "reorganizar o reconhecimento da cidadania italiana", ela introduz efeitos que impactam situações anteriores à sua promulgação.
Na prática, milhares de descendentes de italianos, que já haviam obtido ou estavam em vias de obter o reconhecimento da cidadania, passaram a ter seus direitos submetidos a novos critérios de residência, ascendência e vínculos, inexistentes no momento dos fatos.
O direito à cidadania, que é personalíssimo e imprescritível, foi transformado em uma categoria condicional, sujeita a revisões políticas e à arbitrariedade administrativa.
Essa técnica legislativa é perigosa porque cria uma ilusão de legalidade.
A norma é formalmente válida, mas materialmente injusta. O problema não está no texto frio da lei, mas na inversão da lógica constitucional: o cidadão deixa de ser sujeito de direitos e passa a ser objeto de revisão estatal.
Violação do art. 25 da Constituição Italiana
O artigo 25 da Constituição dispõe, em seu primeiro parágrafo, que "ninguém pode ser afastado do juiz natural, nem punido senão em virtude de lei anterior ao fato cometido".
Ainda que a literalidade pareça limitar-se ao direito penal, a doutrina constitucional italiana — especialmente a partir das decisões n. 74/1956, 63/1963 e 236/2011 da Corte Costituzionale — consolidou a compreensão de que o princípio da irretroatividade tem natureza geral.
Ele protege não apenas contra sanções penais, mas contra qualquer ato legislativo que altere, em prejuízo do cidadão, situações jurídicas já constituídas.
Ao atingir processos já em curso ou direitos reconhecidos antes da sua entrada em vigor, a Lei 74/2025 viola esse princípio.
Não há base constitucional que autorize o Estado a redefinir retroativamente a condição de cidadão italiano, uma vez que essa qualidade deriva de fatos históricos (o nascimento, a filiação, a descendência), e não de vontade política.
A cidadania não nasce com a lei, ela apenas é reconhecida pela lei.
A tentativa de submeter a validade de uma filiação ou de um direito já reconhecido à luz de nova legislação equivale a negar o próprio conceito de Estado de Direito.
Efeitos sobre a segurança jurídica e a confiança legítima
A segurança jurídica é o alicerce sobre o qual se ergue a confiança dos cidadãos nas instituições.
Ela assegura que o indivíduo possa organizar sua vida sabendo que as normas do Estado são previsíveis e estáveis.
Quando o legislador rompe essa previsibilidade, destrói-se não apenas a segurança jurídica, mas também o pacto de confiança que legitima o poder público.
A Corte Costituzionale, em diversas decisões (n. 349/1985, n. 24/2017 e n. 89/2022), reiterou que a confiança legítima do cidadão é elemento integrante do princípio do Estado de Direito.
Isso significa que nenhuma reforma, por mais bem-intencionada que seja, pode surpreender o indivíduo de forma desproporcional ou retroativa.
A proteção da confiança é, portanto, um dever constitucional do Estado — não uma concessão política.
No contexto da cidadania, a violação é dupla: jurídica e emocional.
Milhares de famílias que construíram sua identidade com base em um direito reconhecido foram lançadas em um limbo administrativo, obrigadas a provar novamente aquilo que já havia sido juridicamente atestado.
Esse retrocesso não apenas fere a Constituição Italiana, mas afronta a própria dignidade humana.
A dimensão internacional do problema
O princípio da irretroatividade e da proteção da confiança legítima encontra eco nas normas internacionais que vinculam a Itália.
O artigo 6 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDU) assegura o direito a um processo justo e previsível.
O artigo 11 da Constituição Italiana, por sua vez, impõe ao Estado o dever de respeitar os compromissos internacionais assumidos.
Ao criar normas retroativas que desestabilizam decisões judiciais e administrativas anteriores, a Itália viola suas próprias obrigações perante a ordem internacional.
Além disso, o direito à nacionalidade é protegido pelo artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece que "ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade".
Uma lei que introduz efeitos retroativos capazes de anular reconhecimentos válidos é, em essência, uma forma de privação arbitrária da nacionalidade.
Retroatividade e erosão do Estado de Direito
A retroatividade não é apenas um problema técnico, é um sintoma de erosão constitucional.
Um Estado que muda as regras do passado se afasta do ideal republicano e se aproxima da arbitrariedade.
A Constituição Italiana, nascida da resistência ao totalitarismo, foi concebida exatamente para impedir que a lei se tornasse instrumento de manipulação política.
A cidadania italiana iure sanguinis não é um privilégio a ser concedido, mas um direito originário, vinculado à continuidade histórica do povo italiano.
Quando o legislador tenta retroagir para redefinir quem é ou não é italiano, o que está em jogo não é apenas a nacionalidade, mas o próprio conceito de pertencimento republicano.
Conclusão
A Lei 74/2025 apresenta as seguintes violações:
- Fere o art. 25 da Constituição Italiana
 - Viola o princípio da segurança jurídica
 - Desrespeita as obrigações internacionais assumidas pela República
 - Viola a confiança legítima dos cidadãos
 - Destrói direitos adquiridos
 - Compromete a credibilidade das instituições
 
O direito não é instrumento de conveniência política, é o limite que protege o cidadão do poder.
E a Constituição de 1948 não foi escrita para ser reinterpretada conforme as marés eleitorais, mas para resistir a elas.
Enquanto houver quem defenda que o passado não pode ser reescrito, a República permanece viva.
Por Mariane Baroni
    Advogada especializada em Direito Internacional e Constitucional
    Diretora Jurídica da Master Cidadania
Autora da série "Você sabe exatamente o que está sendo discutido?", dedicada a traduzir o debate constitucional italiano em linguagem acessível, sem perder o rigor técnico.
A série integra o projeto "A Constituição e a Cidadania", que resultará no e-book homônimo a ser lançado após o julgamento da Corte Costituzionale Italiana.
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